“Elvira era uma rapariga estrangeira que foi parar a um lugar onde “rapariga” era palavra feia que nunca deveria ser utilizada para denominar uma moça de família, ainda por cima a filha do negão, dono do buteco daquela estranha aldeia de Minas Gerais. Isso quase lançou Elvira para a fogueira em praça pública, como nas remotas épocas da Inquisição.
Naquela noite no ginásio, escola preparatória em português de Portugal, sentia-se uma inquietação no ar. Mal o sinal tocou, as 4 turmas em peso correram em tumulto para a saída da escola, até parecia que iam ver passar o Michael Jackson, o ídolo mais adorado daquela época. Até o Sr. contínuo comentou o sucedido. Elvira foi uma das últimas a sair e não podia acreditar no que via enquanto descia pela escadaria da saída da escola. Uma pequena multidão amontoada de colegas, os seus irmãos e primos e primas mais velhas e mais novas, e jovens que não poderiam perder aquele espectáculo, coisa tão rara e excitante, tipo luta de galos, neste caso, galinhas, porque uma estrangeira tinha chamado de rapariga a uma moça da terra. Que ultraje!
O Sr do buteco era mesmo um negão, daqueles grandes e a sua filha, peixinho que puxou ao pai, era uma negona forte e feia. Apoiada pelos nativos e pelo silêncio atento e expectante dos alcoviteiros, somente interrompido para responder às questões que a negona colocava ao seu público em modos de provocação, vinha com uma fúria de bulldozer. Elvira cabisbaixa permanecia calada a tentar manter as pernas direitas e em andamento, depois de ter dito, em vão, que rapariga não significa “mulher da vida” em português de Portugal.
A 200 metros de martírio, à frente da Igreja, já não havia fuga possível, a negona estava cheia de pujança para dar um enxerto à estrangeira quando chega o Hildebrando. O moço tinha um nome diferente que Elvira nunca mais esqueceu. Foi ele que interveio a seu favor. O jovem mais cobiçado da aldeia, filho do criador de vacas Zebu, conseguiu dissipar os sedentos de sangue e desgraça e escoltou Elvira até casa.
Mas a história não acaba aqui. No final da tarde seguinte, Hildebrando foi buscar Elvira a sua casa. Elvira ficou sinceramente feliz pela amabilidade do rapaz, e ela mal sabia o que a esperava, porque ele não só ia acompanha-la ao ginásio, como também ia leva-la ao buteco, onde o negão tinha uma limonada fresquinha e um pedido de desculpa pelo mau comportamento da sua filha.”
Um caso de xenofobia atiçado por um infeliz acidente de língua. A inveja, o sentimento de inferioridade, o ciúme, a intolerância e o voyeurismo perverso está bem patente nesta história. Por outro lado, um exemplo de solidariedade e sentido de justiça. Em todo o caso, mesmo que a maldade esteja enraizada nos corações de muitos seres, ainda existem exemplos que dão esperança para todos aqueles que pretendem praticar o bem.
Mas esta história ainda me faz ir mais longe na reflexão, não somente sobre a natureza dos seres humanos, sobre o mal e o bem, mas sobre a torre de Babel. Sobre as barreiras da língua e os equívocos da comunicação. Neste momento, sinto dificuldades em expressar por palavras o sentido real da comunicação, ferramenta útil, mas arma vil capaz de suscitar tamanhas injustiças, tamanhos enganos.
Mais valia estarmos calados, impedidos do sentido da fala, como os animais.
Sem comentários:
Enviar um comentário