13 junho 2013

Daí o sucesso do Harry Potter

"Durante muito tempo, na sociedade ocidental, a vida de todos os dias só pôde ter acesso ao discurso quando atravessada e transfigurada pelo fabuloso; era preciso que ela fosse retirada para fora de si própria pelo heroísmo, a façanha, a aventura, a prudência e a graça, eventualmente a perversidade; era preciso que fosse marcada por um toque de impossível. Só então se tornava dizível. Aquilo que a punha fora de alcance permitia-lhe funcionar como lição e exemplo. Quanto mais a narrativa fugisse ao vulgar, mais força tinha para fascinar ou persuadir.

Desde o séc. XVII, o Ocidente viu nascer toda uma 'fábula' da vida obscura de onde o fabuloso se achou proscrito. (...) Nasce uma arte da linguagem cuja tarefa já não é cantar o improvável, mas pôr em evidência o que não é evidente (...) A partir do momento em que se instala um dispositivo para forçar a dizer o 'ínfimo', aquilo que não se diz, que não merece glória nenhuma, o 'infame', portanto, toma forma um novo imperativo que vai constituir o que se poderia chamar a ética imanente aos discursos literários do Ocidente: as suas feições universais vão esbater-se pouco a pouco; já não terá por tarefa manifestar de modo sensível a excessiva exuberância da força, da graça, do heroísmo, do pudor; mas sim irá à procura daquilo que é mais difícil de notar, o mais oculto, o que dá mais trabalho a dizer e a mostrar, enfim o mais interdito e o mais escandaloso. Uma espécie de injunção de desentranhar a parte mais nocturna e mais quotidiana da existência (...) vai traçar aquela que é a direcção para que pende a literatura desde o séc. XVII, desde que é literatura no sentido moderno do termo. A ficção substituiu desde essa altura o fabuloso, o romance libertou-se do romanesco e não se desenvolverá a não ser na medida em que dele se se for libertando cada vez mais completamente. A literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção por meio do qual o Ocidente obriga o quotidiano a pôr-se em discurso."
 
Michel Foucault, O que é um Autor

 

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