Desde o séc. XVII, o Ocidente viu nascer toda uma
'fábula' da vida obscura de onde o fabuloso se achou proscrito. (...) Nasce uma
arte da linguagem cuja tarefa já não é cantar o improvável, mas pôr em
evidência o que não é evidente (...) A partir do momento em que se instala um
dispositivo para forçar a dizer o 'ínfimo', aquilo que não se diz, que não
merece glória nenhuma, o 'infame', portanto, toma forma um novo imperativo que
vai constituir o que se poderia chamar a ética imanente aos discursos
literários do Ocidente: as suas feições universais vão esbater-se pouco a
pouco; já não terá por tarefa manifestar de modo sensível a excessiva exuberância
da força, da graça, do heroísmo, do pudor; mas sim irá à procura daquilo que é
mais difícil de notar, o mais oculto, o que dá mais trabalho a dizer e a mostrar,
enfim o mais interdito e o mais escandaloso. Uma espécie de injunção de
desentranhar a parte mais nocturna e mais quotidiana da existência (...) vai
traçar aquela que é a direcção para que pende a literatura desde o séc. XVII,
desde que é literatura no sentido moderno do termo. A ficção substituiu desde
essa altura o fabuloso, o romance libertou-se do romanesco e não se
desenvolverá a não ser na medida em que dele se se for libertando cada vez mais
completamente. A literatura faz assim parte daquele grande sistema de coacção
por meio do qual o Ocidente obriga o quotidiano a pôr-se em discurso."
Michel Foucault, O que é um Autor
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