16 agosto 2020

Queria ser um cão

Certo amigo disse-me: “Epá, queria ser um cão”

Isto porque me contava que o seu cão teve um problema e levou-o a uma clínica tão impressinante, que em 70 anos de vida nunca tinha visto um hospital para pessoas com aquelas soberbas condições físicas e humanas.

Fiquei a refletir por uns dias sobre o assunto.

E vagueei sobre a vida daquelas pessoas que perderam a fé nos outros (embora quem perde a fé nos outros, perde também a fé em si) e dedica-se aos animais, sendo o mais adorado os da espécie canina, sempre disponível para todos os caprichos humanos, activos, engraçados e tão dependentes que até dá gosto ter a tal âncora que seus donos tanto precisam. 

Também já tive muitos cães, e adoro cães, mas acho estranha esta forma moderna de se relacionar com eles, mais parece uma dependência que uma relação de partilha de amor livre.

Depois, os meus pensamentos voaram, incrível o que os pensamentos podem fazer,  e sobrevoaram sobre a indústria à volta dos animais de estimação das pessoas que vivem nas cidades, desde spas e hotéis até comidas especiais e roupinhas. 

E depois comecei a tripar quando me lembrei que estas mesmas caridosas pessoas, que dizem amar os animais, comem carne de animais que levaram uma vida de dor, exploração, solidão e medo. Sem falar dos antibióticos, hormonas de crescimento e mais uns pozinhos de perlimpimpim produzidos nos laboratórios da senhora poderosa indústria farmaceutica, para que a meta do lucro seja alcançada, e que é ingerida por aqueles que mastigam as suas carnes doentes.  

E já ia eu lançada na montanha russa de emoções que os animais humanos me provocam, um mix de desprezo e compaixão, incredulidade e susto, desgosto e desapontamento e assim por diante, que tive que correr para aqui e vomitar toda a minha má disposição que estes meus pensamentos me provocaram.

Até eu queria ser um cão, não para receber atenção, mas para me livrar do pensar. 


07 agosto 2020

Fotografias

Cheguei eu, menina da linha de Cascais, àquela aldeia do interior das Beiras, que parecia ter ficado atrasada no tempo. 

A calçada de pedra da minha rua rugia quando passava a carroça com o boi do Sr Zé, que cheirava rapé.  

O edifício da escola era ainda daqueles do Estado Novo e os seus professores rígidos da idade que emperra os ossos, mas também rígidos de mente. 

Aquela escola cheia de crianças da aldeia foi onde se deu a contaminação. 

Os meus belos cabelos louros ficaram pejados de piolhos. 

A minha mãe, aflita com tamanha invasão de parasitas, não foi de modos, aplicou logo uma medida radical. Rapou-me o cabelo. Lembro-me de andar com um lenço, pois faziam troça de mim.

Hoje encontrei uma fotografia do primeiro verão, depois do acontecimento, em que o meu cabelo já estava mais ou menos composto. Comia alegre um choco com tinta.

Incrível como as fotografias nos fazem viajar no tempo.