04 novembro 2008

O desencanto

Crónica “O contador de histórias” por João Aguiar “…um Abominável Homem das Neves. Que chora duas grossas lágrimas. …antes disso tenho que explicar que estou a escrever em plena crise financeira mundial, because Estados Unidos e capitalismo selvagem correlativo. …Ora bem, sucede que esta crise, extremamente irritante para não dizer mais, me leva a outras reflexões … esta crise, muito antes de ser financeira e económica, é mental e ética. Muito certamente, ela não teria acontecido se na sociedade contemporânea houvesse valores éticos e o pensamento dominante fosse outro. Retenham, por favor, esta ideia para avançarmos na direcção do nosso simpático e abominável homem das neves. O Yeti é, aqui, um símbolo. E chora porque o pessoal deixou de acreditar nele. Ao longo de gerações, tiveram-no como um animal simiesco e monstruoso, habitante dos recantos gelados dos Himalaias… Com tanto mistério em seu redor, acabou por tornar-se um abominável simpático. Porém, as expedições científicas e o turismo de grandes alturas, para além de encherem as encostas nevadas com latas de coca-cola, cerveja e outros detritos vários, trouxeram a descrença. Nenhum dado minimamente fiável foi encontrado até à data. Para um Yeti que seja consciente e responsável, esta cessação de existência justifica, naturalmente, todas as lágrimas… O pior é que não só: o abominável não é a única vítima. Hoje, nada é sagrado… …Um autor francês, Marcel Gauchet, publicou recentemente um livro de reflexão histórica chamado Le désenchantement du monde. ….aqui, vou ficar-me pelo título, que contém uma ambiguidade: “désenchantement” pode significar “desencantamento”, no sentido de quebra de feitiço (o sentido que o autor lhe dá), mas também pode significar desencanto, no sentido de desilusão, de perda. Portanto, em vez de falar de desencantamento do mundo – que para Gauchet, é a libertação, a emancipação do homem em relação à natureza e às suas próprias superstições – eu falo, aqui, de desencanto do mundo. …e um tal desencanto é perigoso, porque nos afasta de tudo quanto seja sagrado, ou melhor, neste caso: de tudo quanto seja digno de respeito. O nosso próximo, o ambiente, a paisagem, o planeta. No momento presente, repito, nada é sagrado. Menos que tudo, a honra – e por isso a crise, porque os manipuladores da economia não se preocupam com a honestidade nem com o mal que possam fazer aos outros; menos que tudo, o ambiente a paisagem, o património. Menos que tudo – tudo. Porque “tudo” só serve para levar ao lucro, não importa a que preço. Mesmo ao preço da fome, da doença, do sangue, e até, por que não, do desaparecimento da vida na Terra. ….A ver se não ficamos totalmente yetificados.” “Super Interessante” Novembro 2008.

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